terça-feira, 11 de outubro de 2016

7 histórias pouco conhecidas de Renato Russo

Renato Russo
1.A turma de Brasília
Em 1978, Renato Russo formou o Aborto Elétrico, ao lado dos irmãos Fê e Flávio Lemos, primeiro fruto musical do grupo de amigos brasilienses que se denominava a “Turma da Colina”. Com o fim da banda, Renato Russo viu que podia brilhar sozinho. E descobriu seu poder de manipulação.
Por Fê Lemos, do Capital Inicial:
“Ainda nos anos 80 – quando o Renato deu aquela declaração de que ‘pra tocar no Hollywood Rock é que existem bandas como o Capital’, dizendo que a Legião nunca faria isso, perguntei a ele sobre a história de Brasília, de termos sidos tão companheiros, se ele olhava (para trás), se aquilo tinha algum significado pra ele… Ele falou: ‘Fê, aquilo passou, cara. Já era’.
E eu ainda era muito apegado àquela história de ‘turma’, de companheirismo, de ficarmos unidos por um objetivo. De repente, ele já estava muito distante disso, percebendo o papel e a importância dele – estava bem claro o quão famoso ele era e que aquela história era só parte do passado. E não adiantava querer forjar uma aliança baseada no passado porque as condições do presente eram diferentes.
Nada ficava ao acaso (para o Renato). Ele sempre planejou e analisou tudo. Outra vez li na BIZZ que ele disse que uma menina tinha apanhado com um cacetete elétrico e perdido o filho, por isso a banda se chamou Aborto Elétrico. Encontrei com ele e perguntei: ‘Pô, por que você falou aquilo? É mentira…’ E ele disse: ‘Não importa, você tem de inventar!’ São os factóides, né? É saber o que falar para criar impacto.”
2. Punks de Brasília e punks de São Paulo
“O Rio parecia um lugar mais família. São Paulo dava um certo medo”, disse Renato em entrevista à BIZZ em 1989. Apesar de pesquisar como podia o movimento punk, rasgar camisetas e pintar o cabelo, Renato Russo tomou um choque quando resolveu ir para São Paulo com a Legião Urbana a partir de 1982. Em entrevistas, chegou a confessar que “morria de medo” dos punks de São Paulo. Drogas pesadas e violência eram ingredientes imprevistos na receita dos amigos de Brasília.
Por Clemente, do Inocentes:
“O movimento punk, não só pro Renato, mas para todo mundo de Brasília, era coisa de amigos. Em São Paulo, era coisa de gangue. Lembro que, na época, o Dado Villa-Lobos apareceu no bar em frente ao (bar punk paulistano) Napalm. Meu, todo mundo parou de conversar e olhou pra ele querendo dar porrada. Tive de pular na frente e falar: ‘Calma, gente, ele está comigo!’.
Naquela época, se você viesse a São Paulo, ia ver os punks de um lado, do outro os metaleiros e também os new waves. Era tribo mesmo, não tinha nada misturado. Era treta mesmo, droga rolando, gente se picando, era tudo de verdade. Entre nós e o pessoal de Brasília, ficaram claras várias diferenças. Quando a gente via os shows da Legião Urbana, naquela época, tinha um certo choque de propostas. O pessoal todo que vinha de Brasília tinha outra vida, eram pessoas que já haviam morado fora do país. E nós éramos um bando de moleques de periferia, eu passava às vezes duas semanas sem aparecer em casa, enquanto aquele pessoal já tinha mais estrutura familiar. Claro que muita gente daqui olhava para a Legião com nariz torcido, nem tinha como ser diferente.”
3. Homossexualidade
Apesar de já insinuada em “Soldados” e “Daniel na Cova dos Leões”, a homossexualidade de Renato só foi assumida publicamente em 1990, em um Entrevistão da BIZZ: “Eu estava precisando me assumir havia muito tempo. Mas fica aquela coisa, filho de católico, ‘você é doente’ etc. (…) Sei que sou assim desde os 3, 4 anos”. Curiosamente, o que não era novidade para amigos e colegas músicos só foi informado à família Manfredini poucos meses antes do público. Dona Maria do Carmo, a Carminha, sustenta que o cantor era bissexual (“O que é bem diferente de ser homossexual”) e que nunca havia desconfiado da orientação do filho famoso até aquele almoço marcante.

Por Dona Carminha Manfredini, mãe de Renato Russo:

“Era um dia de semana qualquer, sem nada de especial, no final dos anos 80. Me lembro que eles lançavam o disco As Quatro Estações [1989]. Estávamos na cozinha de casa, apenas nós dois, preparando o almoço. O Júnior veio, me deu um beijo e falou: ‘Mãe, preciso conversar com a senhora’. Fiquei tão feliz – pensei que ele finalmente anunciaria seu noivado com uma namorada que ele tinha já havia muito tempo. Mas ele afirmou: ‘Não vou me casar com ela. Vou me assumir. Quero me relacionar com homens e mulheres’.”

4. Tretas com a gravadora

Num caso raro na indústria fonográfica, todos os discos da Legião Urbana foram lançados pela mesma companhia, a multinacional inglesa EMI. As regalias (como adiantamentos vultosos e liberdade total no estúdio) eram recompensadas com vendas gordas: até 1996, foram quase 5 milhões de cópias e, desde então, mais alguns milhões em trabalhos póstumos. Entretanto, a relação azedou em 1991 quando, sem material novo para lançar, a gravadora conspirava publicar uma coletânea de sucessos do grupo.

Por Jorge Davidson, ex-diretor da EMI:

“A EMI precisava lançar algo da banda. E queria fazer uma compilação, uma coletânea de sucessos. Fizemos então uma reunião, tarde da noite, na sede da companhia, em Botafogo, para tentar selar a paz. Parecia tudo certo ao final, mas eles saíram dali pichando as paredes, da sala da presidência às escadas…

Eles eram muito desconfiados. A partir do momento em que assinei com a banda, em 1984, eu vivia contando com a possibilidade de eles fazerem como os Sex Pistols e rescindir o contrato antes mesmo de estrear em disco… Mas, pensando bem, até que minha experiência com eles foi muito agradável, com exceção desse incidente. O Renato sempre foi respeitoso em relação à EMI. Era o Bonfá que o impulsionava a fazer malcriação.

Renato Russo foi o artista mais importante de sua geração. Quando os Paralamas estavam gravando o primeiro disco, Cinema Mudo (1983), eu estava adorando a música ‘Química’ e perguntei ao Herbert: ‘Essa é tua também?’ E ele me disse: ‘Não, essa é do Renato. Ele é tudo o que eu gostaria de ser’. Pô, o cara era foda e queria ser o outro!

5. O lado comédia

Renato podia falar por horas de poesia, cinema, pintura e clássicos do rock. O que só seus amigos mais íntimos conheciam era seu senso de humor trash e seu lado cafona (este, um pouco mais célebre graças às covers de Menudo e do disco Equilibrio Distante). Um desses amigos era o ator Maurício Branco.

Por Maurício Branco, ator:

“Renato era o meu melhor amigo – e um cara muito preocupado com os amigos. Renato ficava muito sensível a tudo o que acontecia no mundo. O cúmulo foi quando as revistas noticiaram que a Xuxa estava com depressão. Ele virou pra mim e disse: ‘Tô tão chateado, Maurício…’ Eu não agüentei e tive que dizer: ‘E o que você tem a ver com isso?’ (risos).

Quando estava de bom humor, Renato era ótimo. Ele gostava muito de rir. Nas festas que promovia em casa, era muito comum ele interpretar um personagem, uma suburbana… Era muito engraçado vê-lo falando como uma lavadeira! Além do mais, ele gostava de passar um filme brasileiro de sacanagem e de me ouvir cantando ‘Justify my Love’, da Madonna, com meu inglês macarrônico.”

6.Aids

Renato assumiu sua homossexualidade durante uma viagem aos EUA em novembro de 1989 – quando conheceu o circuito gay americano, como a Christopher Street de Nova York e o Clube Castro de São Francisco. Em Nova York, iniciou seu relacionamento mais duradouro, com o americano Robert Scott Hickmon (“loirinho, cara de estivador”, “um gay de carteirinha”, conforme explicou à extinta revista gay Sui Generis). Com ele, entrou em sua fase de consumo de heroína. Na mesma viagem, também reencontrou uma velha amiga, Leonice Coimbra. Ela seria uma das primeiras a saber, alguns meses depois, que o artista havia contraído o vírus da aids.

Por Leonice Coimbra, artista plástica:

“Lembro exatamente do dia em que Renato me disse que tinha o HIV. Estávamos em Brasília, em 1990. Ele foi até minha casa. Abri a porta, ele me abraçou e me disse que estava positivo, que estava com aids. Eu soube desde o início, ele estava com o exame na mão. Era uma situação complexa, um choque para ele e para qualquer pessoa, porque era como se Renato, naquele momento, descobrisse que estava com os dias contados. Na hora, só pensei em como poderia ajudá-lo.

Pouco tempo antes de ele descobrir que tinha o vírus, nos encontramos em Nova York, no final de 1989. Meu marido havia ido a uma assembléia-geral na OEA (Organização dos Estados Americanos), em Washington. Fui junto e resolvemos ficar mais três meses. Eu e meu marido alugamos um apartamento e, logo depois, o Renato foi até lá e pediu para morar com a gente. A gente fazia vários passeios, andávamos no Central Park, íamos a livrarias.

Lembro que era inverno em Nova York, um frio horroroso. Teve um dia em que estávamos no West Side, andando por uma daquelas ruazinhas e, de repente, encontramos um mendigo numa praça. Ele estava com uma placa na qual se lia que ele tinha perdido o emprego, a casa, a família, vivia nas ruas e estava com aids. Na época, não havia esse fantasma na vida do Renato. Mesmo assim, ficou muito comovido, foi até lá e deu 100 dólares ao mendigo.

Naquela época, Renato se envolveu com Robert Scott Hickmon, que não cheguei a conhecer – ele apareceu depois que fomos a Washington e quando o Renato foi ao Rio. Não lembro se ele me disse se pegou o HIV do Scott ou não (em matérias publicadas na imprensa, atribuiu-se a Leonice a declaração de que ‘Renato tinha certeza que havia pego HIV do Scott’ e que o namorado anterior do americano era doente terminal de aids e de que Renato teria se envolvido com ele sabendo disso). Se tenho um amigo que está com esse tipo de problema, isso na hora não é importante. Só pensei em ajudá-lo, não importava de quem tivesse pego o vírus.”

7. A última briga

Quando A Tempestade (Ou o Livro Dos Dias) foi lançado, em setembro de 1996, já se alastrava o boato de que Renato estaria doente. Dizia-se que o clima no estúdio tinha sido tão pesado que as gravações foram terminadas apenas por Dado Villa-Lobos. “Foi uma questão musical que descambou para o pessoal”, explicou na época. “Renato às vezes não sabe lidar com as pessoas.”

Por Dado Villa-Lobos

“Entramos em estúdio pela última vez em março de 1996. Renato estava um tanto ansioso e com muita vontade de botar tudo para fora. Tanto que a gente planejava lançar um álbum duplo (a segunda parte sairia em 1997, como Uma Outra Estação). Fomos até junho, gravando todo dia. Eu estava produzindo, então tinha de coordenar pessoas e horários.

A voz do Renato vinha fraquejando, mas ele estava bem, comunicativo – era bom para ele estar no estúdio. Mais para o fim, ele foi ficando de saco cheio, as variações de humor eram muito grandes. Sua saúde debilitada lhe dava um grande mal-estar.

Estava tudo no esquema até que a gente brigou. Ele com sangue italiano, eu também… Ele vinha questionando meus métodos de mixagem… Até que um dia, Renato chegou e disse: ‘Ó, fiz a minha parte, vai aí e mixa o disco!’. Aí foi um mês dando gelo nele e ele me dando um gelo. A mixagem foi feita sem corpo presente – a gente ainda se falou por telefone, mas ficou aquela coisa mal-resolvida.

Eu não sabia que o Renato estava naquele ponto (da doença). As notícias da ciência eram boas, ele estava tomando o coquetel. A gente só se falava por telefone, tarde da noite – Renato falava puto, revoltado, mas vibrante. A Tempestade saiu e logo depois ele morreu. Fomos pegos de surpresa pelo comunicado. Ouvindo o disco, a gente vê como era claro esse caráter de adeus. Algo que nós só perceberíamos depois.”

Depoimentos a: Cristiano Bastos (dona Carminha Manfredini); Paulo Terron (Fê Lemos); Ricardo Schott (Clemente, Leonice Coimbra); Sílvio Essinger (Dado Villa-Lobos, Jorge Davidson, Maurício Branco)

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